terça-feira, 20 de novembro de 2012

Eu, cobarde, me confesso.


Confesso que me mantenho impávido e sereno enquanto milhões de portugueses sofrem na pele o peso da cavalgante miséria que se aloja no olhar, nas paredes de casa, no fundo da panela e no futuro dos filhos.

Confesso que assisto aos noticiários das TVs, com a consciência de um inconsciente que lava as mãos do sofrimento de irmãos que se embebedam, que choram, que roubam, que gritam, que se suicidam porque não tem com que pagar a renda, os medicamentos, os livros das crianças o passe, o pão, e perderam o trabalho.

Confesso que não mereço o sol nem a chuva que sobre mim caiem como bênçãos de vida, num tranquilo jardim à beira mar, quando assisto aos despiques de desgarrada, de políticos míopes, surdos e mudos que falam apenas, no lugar comum, na frase feita, com a ideia gasta.

Confesso que não vejo no horizonte gente capaz de bater o pé, de gritar: basta!.

Confesso que me acobardo quando ainda me comovo com o hino nacional, com um cravo vermelho,  ou o olhar de uma criança, mas deixo que o tempo dilua os sentimentos.

Confesso que  deveria usa – los para com eles inundar a assembleia e a consciência do pomposo PR do enfático PM com seu séquito, dos ilustrérrimos Juízes, dos  agitados deputados, dos seráficos cardeais e bispos,  de todo o cortejo de incapazes, que não sabem  que não pode haver nem discursos de promessas, nem jantares, festas, futebóis e risos, enquanto um português sofrer por sua causa.      

Confesso também,  sem cobardia alguma, que nunca votei, nem votarei neles.

 

a vergonha de ser português


Acabei de beber uma aguardente de medronho que acartei da Fuseta até à capital como quem trás Viagra para um pelotão de infantaria.

Os ventos do mar e os da terra têm sido matreiros para com o autor destas letras. Por isso, contra ventos e até marés, quando vierem se vierem, regresso com a loucura de quem se verga mas não parte como fazem as canas no matagal.

É a vergonha de ser português “hoje” que me salta aos dedos para que marcharem no teclado.

Vou vomitar até aos bofes saírem pela boca e mijar no pântano onde florescem os políticos que conheço.
Não lhes perdou o sofrimento que com sorriso macabro derramam sobre o povo a que pertenço, feito de gente boa, dizem que calma, mas sobretudo crédula e adormecida.

É tempo de acordar e enfrentar a insónia que  nos alimenta.

 

sábado, 27 de outubro de 2012

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

CAPITULO X ( texto a incluir em trabalho mais vasto)

O hábito de, diariamente, logo pela manhã, tomar o café, ou seja, a tradicional bica, ler o jornal e fumar um cigarro de enrolar, o único do dia, levava – o a descer do Siroco para o bote e depois de remar um pouco, acostar à muralha de Olhão. António Gil, de mochila às costas, como qualquer mareante, porque espaço e mobilidade são bens preciosos a bordo, senta – se na esplanada onde uns quantos locais, o olham, apontam e comentam a sua presença. Os mais assíduos já o cumprimentam com um aceno afável, como se fosse um pescador, ou um qualquer reformado, igual a muitos que não largam a borda de água, num lamento permanente.


Mal se senta, a empregada diligente de avental e touca branca, traz – lhe o café cheio que é imposição deste cliente, tal como um cinzeiro, mesmo estando o chão repleto de beatas.
As primeiras páginas dos jornais inspiram – se nos noticiários da rádio com que acordou. Fala – se do tradicional amorfismo calculado, de um Presidente da Republica que depois de ter ajudado a enriquecer uns quantos e a empobrecer uns milhões, da degradação e da ineficácia de um Governo, incapaz de salvar o País que se afunda diariamente, dos ministros com acções anedóticas, da incapacidade de uma Justiça que deixa prescrever ou se escusa, em leis dúbias e escorregadias, por onde se salvam ilustres personagens, depois fotos de manifestações de “indignados” de policias, de enfermeiros, de professores, de agricultores, de jornalistas, ao lado de notícias sobre o crescendo da pobreza em numero, onde ingressa a classe, até aqui média e o enriquecimento dos mais ricos, da injustiça para com os reformados que descontaram dezenas de anos para a sua reforma e que agora o Governo dela se apropria para, diz, pagar aos credores estrangeiros, isto enquanto o mais elevado aumento de impostos, não equitativo, faz doer a quem trabalha, ao mesmo tempo que aos empresários, originando uma estagnação de mau agoiro. A noção de país e de nação esboroam – se, quando como nunca, por sugestão do próprio primeiro - ministro e outros líderes radiosos, a juventude parte para o estrangeiro, em busca de trabalho e de futuro. António, nem levantava os olhos das 48 páginas do diário. Não deixou porém de estranhar o que à primeira, poderia parecer uma nova alvorada para a informação no seu país, uma lufada de liberdade, quem sabe se redentora; a tomada de posição de alguns jornais ou Tvs corajosos, frente a grupos financeiros e económicos, nos quais envolvem o PR, ministros e gente grada da vida pública. Céptico, como vem estando, nos últimos tempos, logo fica com a sensação de que por detrás, estão escandalosos jogos de corrupção, de grandes negócios de obras públicas, de privatizações, o mesmo é dizer, da venda de património e da soberania nacionais. Não lhe saem da memória, conhecidos comissionistas, cujo currículo até já aparece nos jornais e Tvs, individualidades a soldo de entidades estrangeiras, conseguem com os escritórios de advogados e deputados interessados contractos surrealistas e transferem os nossos haveres e o nosso futuro para grupos financeiros da China, Angola ou Alemanha, conforme o lobby que vença numa ou noutra modalidade, electricidade, águas, estradas nacionais, Tvs, seguros, saúde etc.- O país está a saque –
Quando levantou os olhos, passou uma ambulância a apitar assustadoramente. Pensou no hospital para onde alguém iria e relembrou as dezenas de exemplos que recentemente encontrara na degradação dos Serviços Públicos de Saúde, numa acção que visa estrategicamente privilegiar a entrada dos grandes capitais na saúde privada. Sentiu como que num enjoo, aquela sensação que se tem quando se está frente à constatação de um assalto, de um crime, perpetrado com minucia e onde à priori, não haverá punição. Pensou tomar mais um café, mas desistiu. Já tinha taquicardia que chegasse.
A esplanada ficava entre os dois mercados reconstruidos em 1916, com inspiração árabe, em tijolo castanho, com minaretes e torreões, como sentinelas viradas para o mar e para África. Nos lados extremos dos dois grandes blocos, jardins com frondosas palmeiras, plátanos, euracádias e miospores. No lado sul balançam – se iates de vários tipos e origens que tanto ficam umas horas, como umas semanas; 2 holandeses, 1 inglês e 1 alemão e 1 sueco, desde os modernos trimarãs até aos, mono - cascos de ferro, ou madeira, que, pelo aspecto, lembram muitos anos de tempestades e vida dura. No pavilhão do lado nascente, o mercado da fruta, de poente, o do peixe. Com frequência e por curiosidade olfactiva percorria – os com a atenção que um ignorante revela. A profusão de peixe fresco, alinhado sobre as bancas e a sua beleza apesar de mortos, que poucas horas antes eram seres vivos e presumivelmente felizes. Sardinhas, peixe - espada, raias, cavalas, pescadas, safios, garoupas, atuns gigantescos e uma infinita variedade de vivalves e afins, com ares de quem não teve uma morte tranquila, aguardam compradores. Tão odorífero como este, só o espectáculo do outro pavilhão; laranjas, melões, maças, peras, uvas, beterraba, romãs figos amêndoas, alfarrobas, tudo o que esta terra algarvia dá em profusão e qualidade. Além dos tentadores frutos secos e os doces regionais; D. Rodrigos, morgados de amêndoa, figos cheios, almendrados que deliciam qualquer guloso. Depois era ali que dava a entrada formal, no seu dia.
Jaziam a chávena da bica vazia, a embalagem do açúcar, não violada e o cinzeiro com a beata. Levantava a cabeça e como numa cena panorâmica percorria os quase 360 graus;. À frente, outra esplanada, esta não em vermelho, mas com cadeiras, mesas e guarda - sois amarelas. Turistas com ar próspero e feliz, de chapéus e bonés de corres garridas, tomam chás com leite, cafés e alguns bebem a primeira de muitas cervejas, ao mesmo tempo que comem torradas e aprendem a gostar dos doces da região. Eles, na maioria, de cabelos brancos e calções garridos e elas, loiras, em trajes, que nas suas terras, por certo, não ousariam no dia-a-dia; saias até aos pés, ou calções, onde mal cabem, ou colans justíssimos, sob camisolas, ou t shirts largas. Mendigos, cada vez mais, vêm serpentear pelas mesas de mão estendida a pedir ou simular a venda de lenços de papel, sabonetes ou pequenos sacos de ameijoas ou berbigão que foram apanhar na ria. Na mesa ao lado um jovem magro, de barba negra crescida e cabelo desalinhado pede umas moedas. Pergunta “Não me dá uma esmolinha? Tenho fome”. A resposta é mais uma nega. António olha - o e lamenta que o jovem, além de revelar a miséria em que vive, por certo avolumada pela necessidade de droga, mostra falta de saber mendigar. Jamais deveria começar por uma negação: não me… Seria muito mais sucedido se peremptoriamente perguntasse: “Dá me uma esmola?” Até para se ser mendigo é preciso saber. Qualquer dia haverá cursos. Pagos, claro. Passa um homem que veste umas calças, só com uma perna, T. shirt branca. Vem de canadianas. Pára junto ás correntes que guardam o passeio empedrado da ria que passa 3 metros abaixo. Um outro, de camisa às riscas verticais, a puxar um cão branco malhado de castanho e bem tratado, fica a falar com o coxo. António imagina o diálogo de ambos. É a conversa de toda a gente resumida num desabafo “Que vai ser de nós?”
Junto ao portão de ferro que dá acesso ao pontão para a replica do caíque Bom Sucesso que em 1808 tripulado por pequeno grupo de pescadores de Olhão partiu para o Brasil afim de comunicar ao Rei D. João VI a retirada das tropas invasoras de Napoleão, três jovens sentam – se em dois caixotes do lixo. Não é difícil adivinhar que a sua preocupação já não é o futebol, nem o desenrolar da Casa dos Segredos. Um deles era o filho da vendedeira que não há muito interpelou António Gil, num apelo para que ele lhe arranjasse um emprego. A mulher, vestida de preto e com sofrimento no olhar e na voz – O senhor veja lá, o meu filho tem 25 anos. Tirou no curso de gestão que bem me custou, gastei quase dez mil Euros e não tem emprego. Já se inscreveu no partido para ver se arranjava para a Camara ou coisa assim, mas não. São muitos a quererem. Olhe, anda a acartar fruta e a vender, algum peixe que lhe dão. Pobre rapaz-
Junto à primeira boia vermelha, um veleiro francês de 40 pés, lançou ferro. A eólica tal como a bandeira de origem e a portuguesa, mais acima e a estibordo, como é de lei, não param de se manifestar. Um casal já de meia - idade desce para o bote com um pequeno motor. Virão a terra à descoberta. Que pensarão deste país?
Num banco virado para o mar uma mulher sentada sacode permanentemente a cabeça e a perna que cruzou com a outra. Magra. Parece ser pobre. As roupas bem passadas estão tom – sobre – tom, com algum gosto sóbrio. Sapatos pretos, rasos, mala à tira - colo, também preta. Casaco de malha castanho claro sobre blusa branca e saia castanha escura às pregas. É frequente naquele local, às vezes com os cabelos a agitarem - se ao vento . A cara já mostra rugas provavelmente do sol pois ela não escolhe o bom ou o mau tempo. Os olhos são verdes, tímidos e raramente saem do horizonte, mas quando olha alguém, fixa como quem dispara. Parece estrangeira mas dizem que é portuguesa e que ficou assim depois de um desgosto de amor. Veio para aqui e cá ficou. António pensou em tempos, abeirar – se dela. Começou por a cumprimentar. Primeiro admirada, depois educada passou a responder. Mais tarde, viria a ser ela a saúda – lo, em primeiro lugar, fazendo pausa no seu movimento eterno. A curiosidade jornalística susteve – se. Ela teria segredos que guardava em si, como num túmulo e ele jamais cometeria esse sacrilégio.


domingo, 1 de julho de 2012

A protagonista

Esta jovem, particularmente bonita e inteligente, de nome Penny, com 4 anos, filha ilegitima, de uma Pitchon e de um Cão de dÀgua, que vive neste momento, com o meu amigo Sérgio do navio Arca de Noé, na Ria Formosa - Olhão, será protagonista de um livro de que sou autor e que vai na 350 página. Com esta personagem, ficaremos a saber como é possivel uma pequena e gentil cadela entender e ser entendida por humanos, ao ponto de com eles partilhar alegrias e sofrimentos, num dia a dia, nem sempre fácil para uns e para outros. Esperamos dar aqui mais informações sobre a referida personagem e fazemos todos os esforços para conseguirmos, com ela, uma reveladora e empolgante entrevista.

domingo, 3 de junho de 2012

O FORA D`HORAS

Dormir num barco fora de água, a mais de 4 metros do chão é pior que dormir num galinheiro. Os sons não têm nada a ver com o mar, o vento bate e a resposta é rígida, inesperada e dura. Há ruídos que no mar não se ouvem e que aqui, parecem impróprios e intrusos. Não há o balanço convencional nem as estrelas a espreitar pelas vigias. O camarote estava quente. Faltava a água e a brisa marítima, para refrescar e adormecer. Talvez pelo calor e pelo cansaço, adormecera cedo para acordar pouco depois. Por isso, vira – se acordado, ainda não passava da meia - noite. Um barulho estranho preocupou – o. Todos os barulhos não habituais, são preocupantes. Pensou ser a bomba dos fundos a funcionar. Não era, nem a das águas putáveis, nem a das águas sujas, nem o bilge blower. Não era o rádio da mesa das cartas nem a tv. Meteu a cabeça na arca congeladora. Nada. Ficou com o perfume de uma morcela que comprara recentemente em Ayamonte e que cheirava que nem uma espanhola no dia de S. Fermin. Cheiro estranho mas a única companhia com um pão integral, comprado na Padaria do Povo e uma cervejola. Subiu as escadas e pôs o pescoço de fora. Um cemitério de naves convalescentes, mortas, moribundas ou a dormitarem. Esqueletos de algumas a lembrar o fim. Calçou um chinelos de enfiar no dedo, abeirou – se da escada e desceu com alguma dificuldade, não fosse estatelar – se, daquela altura. Lembrou – se de nessa manhã, ter perguntado, a um jovem que polia a pintura exterior se alguém já morrera por ter caído daquela escada. Ele tirou a mascara e disse que sim. Antes de se pôr novamente a trabalhar explicou que fora um pescador que ao descer, caíra e que quando chegou o 112, já estava azul. Para acalmar o cliente, adiantou que devia estar com os copos, ou ter tido um ataque cardíaco. Respondi – lhe que não desgostava da cor, mas que não era nada cómodo espatifar – me entre tubos, madeiras, utensílios de todo o tipo. Em cuecas, tronco nu e chinelos desci a lembrar a história. Ali, estava particularmente escuro. Aproximei – me do ruido. Dois cães armados em guardas mas afinal maricas e até simpáticos vieram ao encontro. Entrei sorrateiro num pequeno pavilhão de madeira. Dois homem, debruçados sobre uma carcaça de um barco de uns 4 metros aplicavam o madeirame. -O que é isto? Vem pregar – nos, um susto, ou fazer uma reportagem?. Trás o microfone? Escondeu – o nas cuecas.- Desataram a rir que nem uns desgraçados. O processo de colocar madeiras direitas num casco curvo, mereceu – me particular atenção. Colocavam a madeira de cambala, ou pinho fixando – a com pregos e apertos, depois de a molharem ao mesmo tempo que a queimavam com um maçarico. Vira uma vez uma explicação de uma operação estética – cirúrgica, à espinha de uma vítima de um acidente. Não variava muito do que ali testemunhava. Vim a saber que haviam desenterrado aquele esqueleto que deveria ter aí uns 100 anos. Resolveram devolver – lhe a vida e fixavam uma tábua por dia. - Quando é que estará pronta? - Lá para o Natal.- E voltaram a rir que nem uns desgraçados. A sair ainda perguntei com o se chamaria a interessante observação. Ficaram a pensar. Interrompi – lhes o pensamento : Chamam – lhe O FORA D`HORAS. - Boa . Foi a resposta Pouco depois voltava a enfiar – me na cama. Espreitei para a lua enquanto pensava quão interessante era a o trabalho que aqueles homens, um dono de um restaurante em Olhão e o outro calafate, impuseram a si próprios para fora de horas. Dar vida a um barco quando ele a perdera. Lindo, sim, porque os barcos têm vida. Os homens é que quando a perdem, não têm gente assim para os ressuscitarem. Quando tentam ressuscitar, apedrejam – nos. Muitas vezes enterram – nos vivos, para nunca mais serem vistos e jamais navegarem.

NO ESTALEIRO

A ideia da viagem, até ao fim do mundo, avança na minha cabeça. Há que preparar o ARIES para a grande jornada. É um veleiro dos mais resistentes, seguros e confortáveis. Fabricação inglesa, o Iate da Rainha, como anunciam, (100 vezes menor). Quem vai ao mar, avia – se em terra. Precisa ir a seco. Eram 8 da manhã, o sol já brilhava havia muito tempo, a garantir mais um dia lindo. Na Ria, nem ponta de vento, nem borbulha na água. Só de quando em vez, peixes aos cardumes, fazem pela vida. Parecem felizes, mas estarão? Num momento, centenas de tainhas e outros, salemas, parecidas com douradas, resolvem seguir uma, que deve ser a chefe e bem ensaiadas, ágeis, fazem uma pirueta, como uma formação militar a virar à esquerda ou à direita. Dão um salto colectivo que mais parece a aproximação de uma baleia. Na política dos homens, os tubarões e as tainhas fazem o mesmo. De resto, uns pássaros, guarda – rios, gaivotas, mergulhões, flamingos, garças, cegonhas e patos, fazem rasantes à agua e alguns ao mastro. Um ou outro atreve-se a pousar na borda. Nem um pescador na apanha da ameijoa ou berbigão, porque as zonas de cultivo ainda estão submersas. A maré ainda enche, mais uma hora. É altura para, com segurança, levar as 19 toneladas, ao local onde será limpo, retocado nas beliscaduras do mau tempo e da mareação, reforçar velas, forçar mastros, rever luzes de sinalização, instalar plotter e radar, estes, até agora, num armário sob as estantes dos livros, a aguardarem a aventura. Mal avistamos o estaleiro, um trabalhador acenou – nos. Era ali. Já sabia que era o estaleiro que obedecia mais aos hábitos tradicionais que aos modernos. Nada de gruas, elevadores, nem rampas especiais. Como se fazia há 500 anos ou até, talvez desde o primeiro barco, uma rampa de travessas fixas ao solo, devidamente engorduradas e uns apetrechos no mar, são o suficiente para o mestre Victor garantir uma boa aterragem. Por este processo tem erguido centenas de grandes embarcações de pesca de carreiras e de transporte com muitas toneladas. Visto do mar, mais parece um cemitério de embarcações, na maioria de pesca e de madeira. Poucos iates e naves em fibra. Embarcações com ferimentos, bem visíveis, porque o tempo desgasta e o mar é traiçoeiro. O processo de encalhe é medieval, ou mais antigo ainda: três pontos determinam o enfiamento. Uma bóia, a uns 150 metros da rampa, com os madeiros, a 50 metros a sobressaírem da água, duas estacas que são as partes laterais do berço ou carro. Estas hão - de amparar o navio até, que em terra, seja devidamente escorado. O piloto é avisado que deverá, colocar a embarcação de ré, virada para a bóia e a proa apontada ao meio das anteparas do berço que afloram à superfície. Porque não é fácil estabilizar como se pretende, dados a inexactidão dos gestos do skipper por mais experiente que seja, os ventos e as correntes, um cabo duplo é fixado da bóia à ré, indo aumentando a distância conforme se avança. Das anteparas partem dois cabos, um para bom- bordo, outro para estibordo, afim de se garantir a simetria milimétrica da manobra. Agarrado ao leme, pensei que estes gestos artesanais, mas sensíveis, terão sido repetidos milhões de vezes na história da navegação de todo o mundo e naturalmente pelos nossos antepassados do tempo em que eramos uma povo de marinheiros e pescadores. A dada altura, sobe para bordo o mestre. O piloto deixa de comandar. Sem leme é o mestre que, com os seus cálculos, medindo os nós, pré - feitos nos cabos laterais, palmo a palmo, centímetro, a centímetro, coloca, com ordens e gritos, a nave no berço - carro. Após a garantia da boa manobra, o berço, já com o precioso objecto seguro, é puxado, agora por um pequeno tractor colocado em terra. Outrora, terão sido homens e juntas de bois a fazer este impressionante esforço de tracção. Após uns minutos de alguma tensão e perigo, travessas, sobre travessas, engorduradas, deslizam com ranger de casco e de cabos, até se imobilizar. Dá – se por terminada a manobra e inicia - se a obra. É altura de voltar à lista das condições essenciais para que a viagem não redunde num naufrágio. Ainda há tanto a fazer. O mestre Sérgio, sócio do mestre Victor, delicadamente indaga, com oportunidade, se tenho Carta de Alto Mar. -Não, só de Costa,- respondi, como se, quando a vontade é superior, houvesse limites à alma e engenho humanos. Depois, pensei no itinerário, nos alimentos, medicamentos, comunicações. Quanto à carta, veria mais tarde. Para já, queria partir, perder – me no horizonte.