domingo, 3 de junho de 2012

NO ESTALEIRO

A ideia da viagem, até ao fim do mundo, avança na minha cabeça. Há que preparar o ARIES para a grande jornada. É um veleiro dos mais resistentes, seguros e confortáveis. Fabricação inglesa, o Iate da Rainha, como anunciam, (100 vezes menor). Quem vai ao mar, avia – se em terra. Precisa ir a seco. Eram 8 da manhã, o sol já brilhava havia muito tempo, a garantir mais um dia lindo. Na Ria, nem ponta de vento, nem borbulha na água. Só de quando em vez, peixes aos cardumes, fazem pela vida. Parecem felizes, mas estarão? Num momento, centenas de tainhas e outros, salemas, parecidas com douradas, resolvem seguir uma, que deve ser a chefe e bem ensaiadas, ágeis, fazem uma pirueta, como uma formação militar a virar à esquerda ou à direita. Dão um salto colectivo que mais parece a aproximação de uma baleia. Na política dos homens, os tubarões e as tainhas fazem o mesmo. De resto, uns pássaros, guarda – rios, gaivotas, mergulhões, flamingos, garças, cegonhas e patos, fazem rasantes à agua e alguns ao mastro. Um ou outro atreve-se a pousar na borda. Nem um pescador na apanha da ameijoa ou berbigão, porque as zonas de cultivo ainda estão submersas. A maré ainda enche, mais uma hora. É altura para, com segurança, levar as 19 toneladas, ao local onde será limpo, retocado nas beliscaduras do mau tempo e da mareação, reforçar velas, forçar mastros, rever luzes de sinalização, instalar plotter e radar, estes, até agora, num armário sob as estantes dos livros, a aguardarem a aventura. Mal avistamos o estaleiro, um trabalhador acenou – nos. Era ali. Já sabia que era o estaleiro que obedecia mais aos hábitos tradicionais que aos modernos. Nada de gruas, elevadores, nem rampas especiais. Como se fazia há 500 anos ou até, talvez desde o primeiro barco, uma rampa de travessas fixas ao solo, devidamente engorduradas e uns apetrechos no mar, são o suficiente para o mestre Victor garantir uma boa aterragem. Por este processo tem erguido centenas de grandes embarcações de pesca de carreiras e de transporte com muitas toneladas. Visto do mar, mais parece um cemitério de embarcações, na maioria de pesca e de madeira. Poucos iates e naves em fibra. Embarcações com ferimentos, bem visíveis, porque o tempo desgasta e o mar é traiçoeiro. O processo de encalhe é medieval, ou mais antigo ainda: três pontos determinam o enfiamento. Uma bóia, a uns 150 metros da rampa, com os madeiros, a 50 metros a sobressaírem da água, duas estacas que são as partes laterais do berço ou carro. Estas hão - de amparar o navio até, que em terra, seja devidamente escorado. O piloto é avisado que deverá, colocar a embarcação de ré, virada para a bóia e a proa apontada ao meio das anteparas do berço que afloram à superfície. Porque não é fácil estabilizar como se pretende, dados a inexactidão dos gestos do skipper por mais experiente que seja, os ventos e as correntes, um cabo duplo é fixado da bóia à ré, indo aumentando a distância conforme se avança. Das anteparas partem dois cabos, um para bom- bordo, outro para estibordo, afim de se garantir a simetria milimétrica da manobra. Agarrado ao leme, pensei que estes gestos artesanais, mas sensíveis, terão sido repetidos milhões de vezes na história da navegação de todo o mundo e naturalmente pelos nossos antepassados do tempo em que eramos uma povo de marinheiros e pescadores. A dada altura, sobe para bordo o mestre. O piloto deixa de comandar. Sem leme é o mestre que, com os seus cálculos, medindo os nós, pré - feitos nos cabos laterais, palmo a palmo, centímetro, a centímetro, coloca, com ordens e gritos, a nave no berço - carro. Após a garantia da boa manobra, o berço, já com o precioso objecto seguro, é puxado, agora por um pequeno tractor colocado em terra. Outrora, terão sido homens e juntas de bois a fazer este impressionante esforço de tracção. Após uns minutos de alguma tensão e perigo, travessas, sobre travessas, engorduradas, deslizam com ranger de casco e de cabos, até se imobilizar. Dá – se por terminada a manobra e inicia - se a obra. É altura de voltar à lista das condições essenciais para que a viagem não redunde num naufrágio. Ainda há tanto a fazer. O mestre Sérgio, sócio do mestre Victor, delicadamente indaga, com oportunidade, se tenho Carta de Alto Mar. -Não, só de Costa,- respondi, como se, quando a vontade é superior, houvesse limites à alma e engenho humanos. Depois, pensei no itinerário, nos alimentos, medicamentos, comunicações. Quanto à carta, veria mais tarde. Para já, queria partir, perder – me no horizonte.

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