Foi
o seu 4º neto quem veio acorda - lo para a realidade das décadas que viveu até
aqui.
Foi
na passada semana.
Já
somava um neto e duas netas quando se anunciou o mais recente. Iria recebe - lo
em aclamação. Seria mais um macho, um rapaz, um homem que confessa, já lhe
segredava entre sonhos e pesadelos:
-
Avô vou
nascer mas com uma condição; quero ser livre, quero trabalhar num país onde a
justiça também viva. Quero ser feliz e quero fazer os outros felizes.
O
velho respondia – lhe com mais esperança do que convicção – Meu querido Tiago as coisas andam
complicadas, mas o mundo está a mudar, verás. É o objectivo de todo o ser
inteligente.
-
Mas eu ainda não nasci. Tenho o direito
de exigir que a Constituição, os Direitos Fundamentais e a dignidade estejam ao
meu alcance. De outro modo não vale a pena nascer. Para um dia emigrar?
O avô mesmo sabendo que os fetos têm destas
coisas, engolia em seco e os nove meses foram passando. Era sensivelmente assim
o diálogo que tinham sempre que se encontravam
nestas quase 52 semanas, até aquela noite que aqui o trouxe.
A
família entrou toda de prevenção.
A
mãe já nas Descobertas, no Parque das Nações numa das mais modernas unidades
hospitalares. Teria que ser naquela noite pois a médica iria para férias no dia imediato e fazia gosto em
ser ela assistir ao parto.
Num confortável quarto, silencioso e bem
apetrechado, a mãe, a dona do mundo, de
barriga para o ar , com um doce mas estranho sorriso olhava como cúmplice.
O Pai de maquina de filmar e fotografar a postos, controlava os altos e os
baixos das contrações.
O avô antes de vir telefonara preocupado a
confirmar se como era tradição na família teriam trazido a primeira roupa que o
menino iria vestir, aquela que ele e o pai vestiram no seu primeiro momento e
que sua mãe, com alguma solenidade por ser uma herança secular, lhe entregara
como uma coroa ou cetro lembrando: Para
que seja Senhor do seu destino e capitão da sua alma.
Tudo OK - fora a resposta ao telefonema.
Só falta ele.
O
silêncio das 23 horas nessa noite calma foi quebrada pela entrada da equipa
médica que, essa sim, iria dar à luz , ao mundo, e a eles, um ser como dádiva
da humanidade e exemplo do maravilhoso milagre da vida.
Despediram
- se apressados da ansiosa mãe com um carinhoso afago na barriga inchada e
intranquila porque portadora de uma avalanche de sonhos e promessas.
Saíram
do quarto e ela foi levada para a Sala de Partos.
A
noite estava quente. Tal como eles, no céu milhares de estrelas aguardavam.
Quinze
minutos depois pregados à porta da Sala de Partos, esta como porta de uma fábrica de seres humanos, abriu
– se solene e reveladora.
Ante
a espectativa, a médica, com uma ponta de orgulho afirmou enquanto a enfermeira
também vestida de verde sublinhava afirmativamente com a cabeça.
-
Um belo
rapaz . Está bem, saudável e até se fartou de berrar.
-
Mais do
que é habitual? Perguntou o avô na qualidade de patriarca cuidadoso, pondo
de lado a curiosidade de saber se os testículos do menino eram negros, porque sempre
ouvira dizer que os que assim os têm são melhores machos. Protelou a estranha dúvida
e ouviu a senhora doutora .
-
Oh Sim, o
ser rapaz gritou que se fartou... E este
tem boa garganta.
O
avô sorriu sem saber porquê e ripostou – Sai
ao avô que háde berrar até à morte.
Ali estava o Homem Novo. Pensava o homem velho que o novo carregava o peso de gerações de trabalho, de
amor, de entrega à missão incomparável de reconstruir o que jamais fora ou será
construído.
Uma cabecita com um barrete enfiado sob um lençol branco que
escondiam os 2 k e 700 do homem prometido. Os olhos pequeninos a abrir e a fechar
como que a não acreditar que é um dos deles.
A mãe de olhos negros ainda mais brilhantes porque transbordava
de felicidade e o pai, esse gravava na alma os momentos em que a espécie humana
lhe mostrava ao que vinha e o que era.
Foi um instante histórico como milhões que se multiplicam pelo
mundo fora a todo o momento com mais ou menos emoções como quadros pendurados
nas paredes.
Oito dias depois os principais intervenientes na história
reuniam – se para ver o novo homem como num ritual de submissão e respeito.
Enquanto as priminhas com medo de lhe tocarem, rodeavam o
recém –nascido, com uma admiração incomparável expressa em sorrisos e
exclamações, os adultos foram assistir ao nascimento no registo paterno.
E de facto, logo no início, os gritos coléricos do recém nascido
justificavam – se plenamente. É que , comprovaram todos ; alguém havia
esquecido vestir - lhe o ancestral e honroso traje da família.
Um ah de surpresa e
desilusão fez parar a projeção. Haviam vestido sim um fato de macaco com um, bem
evidente, inusitado e provocador emblema, MUSTELA. (empresa fabricante de
produtos para criança).
-
E agora ?
– Inquiriu desiludido o avô junto do responsável por tal esquecimento.
-
E agora? –
pausa para afrontar a responsabilidade
- Olha pai, agora é assim. Mal as crianças nascem vestem – lhe um traje.
-
Um traje?
-
Sim pai,
um traje institucional. São acordos comerciais entre empresas, instituições. É
assim.
Em silêncio retirado para um canto, mais uma vez, o ancião curvado e vencido reconheceu triste
que o menino tinha toda a razão para ter gritado desalmadamente. A seguir,
pensou ainda, que a continuar assim, dentro em breve ninguém será Senhor do seu
destino e a alma, essa surgirá tatuada sem que ninguém tenha consciência disso.
Teria que explicar ao neto.
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