segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A ALMA TATUADA




Foi o seu 4º neto quem veio acorda - lo para a realidade das décadas que viveu até aqui.
Foi na passada semana.
Já somava um neto e duas netas quando se anunciou o mais recente. Iria recebe - lo em aclamação. Seria mais um macho, um rapaz, um homem que confessa, já lhe segredava entre sonhos e pesadelos:
-       Avô vou nascer mas com uma condição; quero ser livre, quero trabalhar num país onde a justiça também viva. Quero ser feliz e quero fazer os outros felizes.
O velho respondia – lhe com mais esperança do que convicção – Meu querido Tiago as coisas andam complicadas, mas o mundo está a mudar, verás. É o objectivo de todo o ser inteligente.
- Mas eu ainda não nasci. Tenho o direito de exigir que a Constituição, os Direitos Fundamentais e a dignidade estejam ao meu alcance. De outro modo não vale a pena nascer. Para um dia emigrar?
 O avô mesmo sabendo que os fetos têm destas coisas, engolia em seco e os nove meses foram passando. Era sensivelmente assim o  diálogo que tinham sempre que se encontravam nestas quase 52 semanas, até aquela noite que aqui o trouxe.
A família entrou toda de prevenção.
A mãe já nas Descobertas, no Parque das Nações numa das mais modernas unidades hospitalares. Teria que ser naquela noite pois a médica iria  para férias no dia imediato e fazia gosto em ser ela assistir ao parto.

 Num confortável quarto, silencioso e bem apetrechado, a mãe, a dona do mundo, de  barriga para o ar , com um doce mas estranho sorriso olhava como cúmplice. O Pai de maquina de filmar e fotografar a postos, controlava os altos e os baixos das contrações.
 O avô antes de vir telefonara preocupado a confirmar se como era tradição na família teriam trazido a primeira roupa que o menino iria vestir, aquela que ele e o pai vestiram no seu primeiro momento e que sua mãe, com alguma solenidade por ser uma herança secular, lhe entregara como uma coroa ou cetro lembrando: Para que seja Senhor do seu destino e capitão da sua alma.
Tudo OK - fora a resposta ao telefonema. Só falta ele.

O silêncio das 23 horas nessa noite calma foi quebrada pela entrada da equipa médica que, essa sim, iria dar à luz , ao mundo, e a eles, um ser como dádiva da humanidade e exemplo do maravilhoso milagre da vida.
Despediram - se apressados da ansiosa mãe com um carinhoso afago na barriga inchada e intranquila porque portadora de uma avalanche de sonhos e promessas.
Saíram do quarto e ela foi levada para a Sala de Partos.

A noite estava quente. Tal como eles, no céu milhares de estrelas aguardavam.
Quinze minutos depois pregados à porta da Sala de Partos, esta como  porta de uma fábrica de seres humanos, abriu – se solene e reveladora.
Ante a espectativa, a médica, com uma ponta de orgulho afirmou enquanto a enfermeira também vestida de verde sublinhava afirmativamente com a cabeça.
-       Um belo rapaz . Está bem, saudável e até se fartou de berrar.
-       Mais do que é habitual? Perguntou o avô na qualidade de patriarca cuidadoso, pondo de lado a curiosidade de saber se os testículos do menino eram negros, porque sempre ouvira dizer que os que assim os têm são melhores machos. Protelou a estranha dúvida e ouviu a senhora doutora .
-       Oh Sim, o ser rapaz  gritou que se fartou... E este tem boa garganta.
O avô sorriu sem saber porquê e ripostou – Sai ao avô que háde berrar até à morte.
Ali estava o Homem Novo. Pensava o homem velho que o novo  carregava o peso de gerações de trabalho, de amor, de entrega à missão incomparável de reconstruir o que jamais fora ou será construído.
Uma cabecita com um barrete enfiado sob um lençol branco que escondiam os 2 k e 700 do homem prometido. Os olhos pequeninos a abrir e a fechar como que a não acreditar que é um dos deles.
A mãe de olhos negros ainda mais brilhantes porque transbordava de felicidade e o pai, esse gravava na alma os momentos em que a espécie humana lhe mostrava ao que vinha e o que era.
Foi um instante histórico como milhões que se multiplicam pelo mundo fora a todo o momento com mais ou menos emoções como quadros pendurados nas paredes.

Oito dias depois os principais intervenientes na história reuniam – se para ver o novo homem como num ritual de submissão e respeito.

Enquanto as priminhas com medo de lhe tocarem, rodeavam o recém –nascido, com uma admiração incomparável expressa em sorrisos e exclamações, os adultos foram assistir ao nascimento no registo paterno.

E de facto, logo no início, os gritos coléricos do recém nascido justificavam – se plenamente. É que , comprovaram todos ; alguém havia esquecido  vestir - lhe o ancestral e honroso  traje da família.
 Um ah de surpresa e desilusão fez parar a projeção. Haviam vestido sim um fato de macaco com um, bem evidente, inusitado e provocador emblema, MUSTELA. (empresa fabricante de produtos para criança).

-       E agora ? – Inquiriu desiludido o avô junto do responsável por tal esquecimento.
-       E agora? – pausa para afrontar a responsabilidade - Olha pai, agora é assim. Mal as crianças nascem vestem – lhe um traje.
-       Um traje?
-       Sim pai, um traje institucional. São acordos comerciais entre empresas, instituições. É assim.

Em silêncio retirado para um canto, mais uma vez,  o ancião curvado e vencido reconheceu triste que o menino tinha toda a razão para ter gritado desalmadamente. A seguir, pensou ainda, que a continuar assim, dentro em breve ninguém será Senhor do seu destino e a alma, essa surgirá tatuada sem que ninguém tenha consciência disso.
Teria que explicar ao neto.

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