é um desabafo, uma dor de alma, um grito vertido assim, a medo, mas com uma vontade enorme de mudar o mundo, ou apenas mudar o autor.
domingo, 3 de junho de 2012
O FORA D`HORAS
Dormir num barco fora de água, a mais de 4 metros do chão é pior que dormir num galinheiro.
Os sons não têm nada a ver com o mar, o vento bate e a resposta é rígida, inesperada e dura. Há ruídos que no mar não se ouvem e que aqui, parecem impróprios e intrusos. Não há o balanço convencional nem as estrelas a espreitar pelas vigias.
O camarote estava quente. Faltava a água e a brisa marítima, para refrescar e adormecer.
Talvez pelo calor e pelo cansaço, adormecera cedo para acordar pouco depois.
Por isso, vira – se acordado, ainda não passava da meia - noite. Um barulho estranho preocupou – o. Todos os barulhos não habituais, são preocupantes.
Pensou ser a bomba dos fundos a funcionar. Não era, nem a das águas putáveis, nem a das águas sujas, nem o bilge blower. Não era o rádio da mesa das cartas nem a tv. Meteu a cabeça na arca congeladora. Nada. Ficou com o perfume de uma morcela que comprara recentemente em Ayamonte e que cheirava que nem uma espanhola no dia de S. Fermin. Cheiro estranho mas a única companhia com um pão integral, comprado na Padaria do Povo e uma cervejola.
Subiu as escadas e pôs o pescoço de fora. Um cemitério de naves convalescentes, mortas, moribundas ou a dormitarem. Esqueletos de algumas a lembrar o fim.
Calçou um chinelos de enfiar no dedo, abeirou – se da escada e desceu com alguma dificuldade, não fosse estatelar – se, daquela altura. Lembrou – se de nessa manhã, ter perguntado, a um jovem que polia a pintura exterior se alguém já morrera por ter caído daquela escada.
Ele tirou a mascara e disse que sim.
Antes de se pôr novamente a trabalhar explicou que fora um pescador que ao descer, caíra e que quando chegou o 112, já estava azul. Para acalmar o cliente, adiantou que devia estar com os copos, ou ter tido um ataque cardíaco.
Respondi – lhe que não desgostava da cor, mas que não era nada cómodo espatifar – me entre tubos, madeiras, utensílios de todo o tipo.
Em cuecas, tronco nu e chinelos desci a lembrar a história. Ali, estava particularmente escuro. Aproximei – me do ruido. Dois cães armados em guardas mas afinal maricas e até simpáticos vieram ao encontro. Entrei sorrateiro num pequeno pavilhão de madeira.
Dois homem, debruçados sobre uma carcaça de um barco de uns 4 metros aplicavam o madeirame.
-O que é isto? Vem pregar – nos, um susto, ou fazer uma reportagem?. Trás o microfone? Escondeu – o nas cuecas.- Desataram a rir que nem uns desgraçados.
O processo de colocar madeiras direitas num casco curvo, mereceu – me particular atenção.
Colocavam a madeira de cambala, ou pinho fixando – a com pregos e apertos, depois de a molharem ao mesmo tempo que a queimavam com um maçarico.
Vira uma vez uma explicação de uma operação estética – cirúrgica, à espinha de uma vítima de um acidente. Não variava muito do que ali testemunhava.
Vim a saber que haviam desenterrado aquele esqueleto que deveria ter aí uns 100 anos. Resolveram devolver – lhe a vida e fixavam uma tábua por dia.
- Quando é que estará pronta?
- Lá para o Natal.- E voltaram a rir que nem uns desgraçados.
A sair ainda perguntei com o se chamaria a interessante observação.
Ficaram a pensar. Interrompi – lhes o pensamento : Chamam – lhe O FORA D`HORAS.
- Boa . Foi a resposta
Pouco depois voltava a enfiar – me na cama. Espreitei para a lua enquanto pensava quão interessante era a o trabalho que aqueles homens, um dono de um restaurante em Olhão e o outro calafate, impuseram a si próprios para fora de horas. Dar vida a um barco quando ele a perdera. Lindo, sim, porque os barcos têm vida. Os homens é que quando a perdem, não têm gente assim para os ressuscitarem. Quando tentam ressuscitar, apedrejam – nos. Muitas vezes enterram – nos vivos, para nunca mais serem vistos e jamais navegarem.
NO ESTALEIRO
A ideia da viagem, até ao fim do mundo, avança na minha cabeça.
Há que preparar o ARIES para a grande jornada. É um veleiro dos mais resistentes, seguros e confortáveis. Fabricação inglesa, o Iate da Rainha, como anunciam, (100 vezes menor).
Quem vai ao mar, avia – se em terra. Precisa ir a seco.
Eram 8 da manhã, o sol já brilhava havia muito tempo, a garantir mais um dia lindo.
Na Ria, nem ponta de vento, nem borbulha na água. Só de quando em vez, peixes aos cardumes, fazem pela vida. Parecem felizes, mas estarão? Num momento, centenas de tainhas e outros, salemas, parecidas com douradas, resolvem seguir uma, que deve ser a chefe e bem ensaiadas, ágeis, fazem uma pirueta, como uma formação militar a virar à esquerda ou à direita. Dão um salto colectivo que mais parece a aproximação de uma baleia. Na política dos homens, os tubarões e as tainhas fazem o mesmo.
De resto, uns pássaros, guarda – rios, gaivotas, mergulhões, flamingos, garças, cegonhas e patos, fazem rasantes à agua e alguns ao mastro. Um ou outro atreve-se a pousar na borda. Nem um pescador na apanha da ameijoa ou berbigão, porque as zonas de cultivo ainda estão submersas.
A maré ainda enche, mais uma hora. É altura para, com segurança, levar as 19 toneladas, ao local onde será limpo, retocado nas beliscaduras do mau tempo e da mareação, reforçar velas, forçar mastros, rever luzes de sinalização, instalar plotter e radar, estes, até agora, num armário sob as estantes dos livros, a aguardarem a aventura.
Mal avistamos o estaleiro, um trabalhador acenou – nos. Era ali.
Já sabia que era o estaleiro que obedecia mais aos hábitos tradicionais que aos modernos.
Nada de gruas, elevadores, nem rampas especiais.
Como se fazia há 500 anos ou até, talvez desde o primeiro barco, uma rampa de travessas fixas ao solo, devidamente engorduradas e uns apetrechos no mar, são o suficiente para o mestre Victor garantir uma boa aterragem. Por este processo tem erguido centenas de grandes embarcações de pesca de carreiras e de transporte com muitas toneladas.
Visto do mar, mais parece um cemitério de embarcações, na maioria de pesca e de madeira. Poucos iates e naves em fibra. Embarcações com ferimentos, bem visíveis, porque o tempo desgasta e o mar é traiçoeiro.
O processo de encalhe é medieval, ou mais antigo ainda: três pontos determinam o enfiamento. Uma bóia, a uns 150 metros da rampa, com os madeiros, a 50 metros a sobressaírem da água, duas estacas que são as partes laterais do berço ou carro. Estas hão - de amparar o navio até, que em terra, seja devidamente escorado.
O piloto é avisado que deverá, colocar a embarcação de ré, virada para a bóia e a proa apontada ao meio das anteparas do berço que afloram à superfície.
Porque não é fácil estabilizar como se pretende, dados a inexactidão dos gestos do skipper por mais experiente que seja, os ventos e as correntes, um cabo duplo é fixado da bóia à ré, indo aumentando a distância conforme se avança. Das anteparas partem dois cabos, um para bom- bordo, outro para estibordo, afim de se garantir a simetria milimétrica da manobra.
Agarrado ao leme, pensei que estes gestos artesanais, mas sensíveis, terão sido repetidos milhões de vezes na história da navegação de todo o mundo e naturalmente pelos nossos antepassados do tempo em que eramos uma povo de marinheiros e pescadores.
A dada altura, sobe para bordo o mestre. O piloto deixa de comandar. Sem leme é o mestre que, com os seus cálculos, medindo os nós, pré - feitos nos cabos laterais, palmo a palmo, centímetro, a centímetro, coloca, com ordens e gritos, a nave no berço - carro.
Após a garantia da boa manobra, o berço, já com o precioso objecto seguro, é puxado, agora por um pequeno tractor colocado em terra. Outrora, terão sido homens e juntas de bois a fazer este impressionante esforço de tracção.
Após uns minutos de alguma tensão e perigo, travessas, sobre travessas, engorduradas, deslizam com ranger de casco e de cabos, até se imobilizar. Dá – se por terminada a manobra e inicia - se a obra.
É altura de voltar à lista das condições essenciais para que a viagem não redunde num naufrágio.
Ainda há tanto a fazer.
O mestre Sérgio, sócio do mestre Victor, delicadamente indaga, com oportunidade, se tenho Carta de Alto Mar.
-Não, só de Costa,- respondi, como se, quando a vontade é superior, houvesse limites à alma e engenho humanos.
Depois, pensei no itinerário, nos alimentos, medicamentos, comunicações.
Quanto à carta, veria mais tarde. Para já, queria partir, perder – me no horizonte.
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