é um desabafo, uma dor de alma, um grito vertido assim, a medo, mas com uma vontade enorme de mudar o mundo, ou apenas mudar o autor.
sábado, 27 de outubro de 2012
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
CAPITULO X ( texto a incluir em trabalho mais vasto)
O hábito de, diariamente, logo pela manhã, tomar o café, ou seja, a
tradicional bica, ler o jornal e fumar um cigarro de enrolar, o único do dia,
levava – o a descer do Siroco para o bote e depois de remar um pouco, acostar à
muralha de Olhão. António Gil, de mochila às costas, como qualquer mareante,
porque espaço e mobilidade são bens preciosos a bordo, senta – se na esplanada
onde uns quantos locais, o olham, apontam e comentam a sua presença. Os mais
assíduos já o cumprimentam com um aceno afável, como se fosse um pescador, ou
um qualquer reformado, igual a muitos que não largam a borda de água, num
lamento permanente.
Mal se senta, a empregada diligente de avental e touca branca, traz – lhe o
café cheio que é imposição deste cliente, tal como um cinzeiro, mesmo estando o
chão repleto de beatas.
As primeiras páginas dos jornais inspiram – se nos noticiários da rádio com
que acordou. Fala – se do tradicional amorfismo calculado, de um Presidente da
Republica que depois de ter ajudado a enriquecer uns quantos e a empobrecer uns
milhões, da degradação e da ineficácia de um Governo, incapaz de salvar o País
que se afunda diariamente, dos ministros com acções anedóticas, da incapacidade
de uma Justiça que deixa prescrever ou se escusa, em leis dúbias e
escorregadias, por onde se salvam ilustres personagens, depois fotos de
manifestações de “indignados” de policias, de enfermeiros, de professores, de agricultores,
de jornalistas, ao lado de notícias sobre o crescendo da pobreza em numero,
onde ingressa a classe, até aqui média e o enriquecimento dos mais ricos, da
injustiça para com os reformados que descontaram dezenas de anos para a sua
reforma e que agora o Governo dela se apropria para, diz, pagar aos credores
estrangeiros, isto enquanto o mais elevado aumento de impostos, não equitativo,
faz doer a quem trabalha, ao mesmo tempo que aos empresários, originando uma
estagnação de mau agoiro. A noção de país e de nação esboroam – se, quando como
nunca, por sugestão do próprio primeiro - ministro e outros líderes radiosos, a
juventude parte para o estrangeiro, em busca de trabalho e de futuro. António,
nem levantava os olhos das 48 páginas do diário. Não deixou porém de estranhar
o que à primeira, poderia parecer uma nova alvorada para a informação no seu
país, uma lufada de liberdade, quem sabe se redentora; a tomada de posição de
alguns jornais ou Tvs corajosos, frente a grupos financeiros e económicos, nos
quais envolvem o PR, ministros e gente grada da vida pública. Céptico, como vem
estando, nos últimos tempos, logo fica com a sensação de que por detrás, estão
escandalosos jogos de corrupção, de grandes negócios de obras públicas, de
privatizações, o mesmo é dizer, da venda de património e da soberania
nacionais. Não lhe saem da memória, conhecidos comissionistas, cujo currículo
até já aparece nos jornais e Tvs, individualidades a soldo de entidades
estrangeiras, conseguem com os escritórios de advogados e deputados
interessados contractos surrealistas e transferem os nossos haveres e o nosso
futuro para grupos financeiros da China, Angola ou Alemanha, conforme o lobby
que vença numa ou noutra modalidade, electricidade, águas, estradas nacionais,
Tvs, seguros, saúde etc.- O país está a saque –
Quando levantou os olhos, passou uma ambulância a apitar assustadoramente.
Pensou no hospital para onde alguém iria e relembrou as dezenas de exemplos que
recentemente encontrara na degradação dos Serviços Públicos de Saúde, numa
acção que visa estrategicamente privilegiar a entrada dos grandes capitais na
saúde privada. Sentiu como que num enjoo, aquela sensação que se tem quando se
está frente à constatação de um assalto, de um crime, perpetrado com minucia e
onde à priori, não haverá punição. Pensou tomar mais um café, mas desistiu. Já
tinha taquicardia que chegasse.
A esplanada ficava entre os dois mercados reconstruidos em 1916, com
inspiração árabe, em tijolo castanho, com minaretes e torreões, como sentinelas
viradas para o mar e para África. Nos lados extremos dos dois grandes blocos,
jardins com frondosas palmeiras, plátanos, euracádias e miospores. No lado sul
balançam – se iates de vários tipos e origens que tanto ficam umas horas, como
umas semanas; 2 holandeses, 1 inglês e 1 alemão e 1 sueco, desde os modernos
trimarãs até aos, mono - cascos de ferro, ou madeira, que, pelo aspecto,
lembram muitos anos de tempestades e vida dura. No pavilhão do lado nascente, o
mercado da fruta, de poente, o do peixe. Com frequência e por curiosidade
olfactiva percorria – os com a atenção que um ignorante revela. A profusão de
peixe fresco, alinhado sobre as bancas e a sua beleza apesar de mortos, que
poucas horas antes eram seres vivos e presumivelmente felizes. Sardinhas, peixe
- espada, raias, cavalas, pescadas, safios, garoupas, atuns gigantescos e uma
infinita variedade de vivalves e afins, com ares de quem não teve uma morte
tranquila, aguardam compradores. Tão odorífero como este, só o espectáculo do
outro pavilhão; laranjas, melões, maças, peras, uvas, beterraba, romãs figos
amêndoas, alfarrobas, tudo o que esta terra algarvia dá em profusão e
qualidade. Além dos tentadores frutos secos e os doces regionais; D. Rodrigos,
morgados de amêndoa, figos cheios, almendrados que deliciam qualquer guloso.
Depois era ali que dava a entrada formal, no seu dia.
Jaziam a chávena da bica vazia, a embalagem do açúcar, não violada e o
cinzeiro com a beata. Levantava a cabeça e como numa cena panorâmica percorria
os quase 360 graus;. À frente, outra esplanada, esta não em vermelho, mas com
cadeiras, mesas e guarda - sois amarelas. Turistas com ar próspero e feliz, de
chapéus e bonés de corres garridas, tomam chás com leite, cafés e alguns bebem
a primeira de muitas cervejas, ao mesmo tempo que comem torradas e aprendem a
gostar dos doces da região. Eles, na maioria, de cabelos brancos e calções
garridos e elas, loiras, em trajes, que nas suas terras, por certo, não
ousariam no dia-a-dia; saias até aos pés, ou calções, onde mal cabem, ou colans
justíssimos, sob camisolas, ou t shirts largas. Mendigos, cada vez mais, vêm
serpentear pelas mesas de mão estendida a pedir ou simular a venda de lenços de
papel, sabonetes ou pequenos sacos de ameijoas ou berbigão que foram apanhar na
ria. Na mesa ao lado um jovem magro, de barba negra crescida e cabelo
desalinhado pede umas moedas. Pergunta “Não me dá uma esmolinha? Tenho fome”. A
resposta é mais uma nega. António olha - o e lamenta que o jovem, além de
revelar a miséria em que vive, por certo avolumada pela necessidade de droga,
mostra falta de saber mendigar. Jamais deveria começar por uma negação: não me…
Seria muito mais sucedido se peremptoriamente perguntasse: “Dá me uma esmola?”
Até para se ser mendigo é preciso saber. Qualquer dia haverá cursos. Pagos,
claro. Passa um homem que veste umas calças, só com uma perna, T. shirt branca.
Vem de canadianas. Pára junto ás correntes que guardam o passeio empedrado da
ria que passa 3 metros abaixo. Um outro, de camisa às riscas verticais, a puxar
um cão branco malhado de castanho e bem tratado, fica a falar com o coxo.
António imagina o diálogo de ambos. É a conversa de toda a gente resumida num
desabafo “Que vai ser de nós?”
Junto ao portão de ferro que dá acesso ao pontão para a replica do caíque
Bom Sucesso que em 1808 tripulado por pequeno grupo de pescadores de Olhão
partiu para o Brasil afim de comunicar ao Rei D. João VI a retirada das tropas
invasoras de Napoleão, três jovens sentam – se em dois caixotes do lixo. Não é
difícil adivinhar que a sua preocupação já não é o futebol, nem o desenrolar da
Casa dos Segredos. Um deles era o filho da vendedeira que não há muito
interpelou António Gil, num apelo para que ele lhe arranjasse um emprego. A
mulher, vestida de preto e com sofrimento no olhar e na voz – O senhor veja lá,
o meu filho tem 25 anos. Tirou no curso de gestão que bem me custou, gastei
quase dez mil Euros e não tem emprego. Já se inscreveu no partido para ver se
arranjava para a Camara ou coisa assim, mas não. São muitos a quererem. Olhe,
anda a acartar fruta e a vender, algum peixe que lhe dão. Pobre rapaz-
Junto à primeira boia vermelha, um veleiro francês de 40 pés, lançou ferro.
A eólica tal como a bandeira de origem e a portuguesa, mais acima e a
estibordo, como é de lei, não param de se manifestar. Um casal já de meia -
idade desce para o bote com um pequeno motor. Virão a terra à descoberta. Que
pensarão deste país?
Num banco virado para o mar uma mulher sentada sacode permanentemente a
cabeça e a perna que cruzou com a outra. Magra. Parece ser pobre. As roupas bem
passadas estão tom – sobre – tom, com algum gosto sóbrio. Sapatos pretos,
rasos, mala à tira - colo, também preta. Casaco de malha castanho claro sobre
blusa branca e saia castanha escura às pregas. É frequente naquele local, às vezes
com os cabelos a agitarem - se ao vento . A cara já mostra rugas provavelmente
do sol pois ela não escolhe o bom ou o mau tempo. Os olhos são verdes, tímidos
e raramente saem do horizonte, mas quando olha alguém, fixa como quem dispara.
Parece estrangeira mas dizem que é portuguesa e que ficou assim depois de um
desgosto de amor. Veio para aqui e cá ficou. António pensou em tempos, abeirar
– se dela. Começou por a cumprimentar. Primeiro admirada, depois educada passou
a responder. Mais tarde, viria a ser ela a saúda – lo, em primeiro lugar,
fazendo pausa no seu movimento eterno. A curiosidade jornalística susteve – se.
Ela teria segredos que guardava em si, como num túmulo e ele jamais cometeria
esse sacrilégio.
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